sábado, janeiro 10, 2015

HERMETO PASCOAL: A INSÓLITA E AGRADÁVEL BRUXARIA MUSICAL DO NORDESTE BRASILEIRO


Certa vez, ainda adolescente, acho que por volta de 74 – contava mais ou menos com os meus 14 ou 15 anos ou por aí -, entrei numa loja de discos e, como sempre, fui procurar coisas novas e, de preferência, sórdidas – coisa que muito me apraz, a exemplo das descobertas do som de Cage, o dodecafonismo todo, Uakti, exsperimentalismos e afins, dentre outros - para ouvir. Nisso encontrei um disco estranho. Olhei a capa, a contracapa, não conhecia e fui até o balcão e comprei. Assim, sem perguntar nem nada. Lembro que, na hora, algumas pessoas escondiam um sorriso, parece que mangando de mim. Fiquei intrigado enquanto esperava o troco, fiscalizando se havia pisado em bosta, se estava cagado ou se alguma coisa risível do mais indesejável estivesse na minha aparição. Encabulado, achava que alguma coisa andava errado comigo. Não me contive e perguntei: - Algum problema? - Não, é que esse disco faz mais de ano que está aqui e ninguém quer. Já vendemos e devolveram. Como existe cliente para tudo, felizmente ele saiu. Espero que não peça devolução ou troca. E fui avisado, mesmo assim, nem ouvi. Arrisquei, sempre arrisco. E não me arrependo.

Cheguei em casa e com a primeira música fiquei estupefato. Que coisa mais linda! Fui checar o nome da faixa: "Bebê". Tudo muito estranho. Deixei correr e veio "Carinhoso". Nossa, já tinha ouvido esse clássico de diversas formas, mas daquele jeito soava muito melhor. Aí deixei correr o disco e quando chegou em "Sereiarei", percebi algo troncho, criativo, inacreditável: gansos, perus, galinhas, patos, coelhos, orquestra, banda e tudo junto! Minha nossa! Depois virei para o lado b e estava lá: "Asa Branca" e "Gaio da roseira". Peguei a capa do disco e vi o nome do disco: "A música livre de Hermeto Paschoal". Era de 1973. Repeti a audição, ouvi umas trocentas vezes e me apaixonei. Aí voltei na loja e encomendei tudo que tivesse dele. Ninguém sabia, ninguém nunca viu, só aquele mesmo.
Anos depois, passando em frente da mesma loja, um dos funcionários me chamou:

- Ei, Luiz, chegou um disco do doido que você gosta?

- Quem?

- Aquele que você encomendou tudo o que tivesse dele!

- Foi? Cadê?

Peguei o álbum com um nome em inglês, "Slaves Mass", o "Missa dos Escravos", de 1976, contando com a participação especial de Airto Moreira e Flora Purim.

Na faixa título, tomei de uma surpresa ao ver o dedilhado de um violão acompanhando um porco que tinha o rabo torcido, parece. Eita! Aí eu já tinha buscado saber de tudo sobre ele, poucas notícias, claro. Só que sempre associado a Geraldo Vandré, o mais conhecido, e Heraldo do Monte e o Quarteto Novo.

Com isso, fiquei sabendo do seu primeiro disco "Hermeto", de 1970. E saí comprando tudo: "Zabumbê-bum-á" – que me inspirei e escrevi a peça “O prêmio” -, e "Hermeto Pascoal ao vivo no Montreaux Jazz Festival", ambos de 1979. Neste último viajei todas as faixas até uma, a mais especial, chamada "Montreaux". Depois foi a vez de "Cérebro magnético", que tem uma música lindíssima chamada "Música das nuvens e do chão" que ousei colocar uma letra, chamada "Cantador", publicada, inclusive, no meu livro "Canção de Terra", sabendo, depois, ser esta uma das músicas que mais possui letra na vida e escrita por uma penca de gente importante da música brasileira. Fiquei na minha. Em seguida, "Hermeto Pascoal e grupo", de 1982; "Lagoa da Canoa, município de Arapiraca", de 1984, título este dedicado à sua terra natal; "Brasil Universo", de 1986; "Só não toca quem não quer", de 1987; "Hermeto Pascoal solo - por diferentes caminhos", de 1988; "Festa dos deuses", de 1992; "Eu e eles", de 1999; e o "Mundo verde esperança" e por aí vai.

Uma outra coisa, é que em 1997, Hermeto escreveu o "Calendário do Som", com 366 músicas, cada uma para cada dia do ano, mostrando sua versatilidade e maestria musical.

Nascido em Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca, Alagoas, em 22 de junho de 1936, ele diz: "O primeiro som que eu fiz foi na hora em que eu nasci. Eu e minha mãe, o duo". E transferiu-se aos 14 anos, já tocando flauta, para o Recife onde começou a tocar piano num trio albino criado por ele, um seu irmão José e mais o grande Sivuca, chamado "Mundo em chamas". Em 1964, juntou-se a Airto Moreira e Humberto Clayber no Sambrasa Trio. Dois anos depois, integrava o Quarteto Novo, com Heraldo do Monte, Theo de Barros e Airto Moreira. Disso, nos anos 70, já nos Estados Unidos, fez arranjos para Miles Davis, Wayne Shorter, Joe Zawinul, Gil Evans, Elis Regina, Ron Carter, Raul de Souza, Taiguara, Astor Piazzola, dentre outros, arrebatando o cognome de bruxo do som pelo experimentalismo.

Toda vez que ele desce pelo Nordeste, eu vou vê-lo.

A primeira vez foi em 1986 ou 87, parece, no Centro de Convenções, em Olinda, quando tive o prazer de ver ele e o Maestro Duda improvisando no palco. Um concerto inesquecível. O bom mesmo foi no final de tudo: os músicos se perfilaram sob o comando do Hermeto e desceram pela plateia ao som do frevo pernambucano.

A outra vez foi no Maceió Jazz Festival. Primeiro entrou o excelente Duofel. Quase no fim da dupla começou a chover no espaço aberto. Quando Hermeto estava se aprontando para subir no palco, caiu o maior pé d´água. Nossa! A tempestade foi tão violenta que chegou a suspender o fornecimento de energia elétrica por horas. Saí frustrado naquele dia por não ter visto Hermeto, mas ganhei um brinde dos bons. Dois dias depois, Duofel abriu. Hermeto fez um concerto inesquecível e do jeito dele: bruxaria da muita. E no final da tarde, já anoitecendo, veio Gilberto Gil fechando tudo num show memorável.

Mas Hermeto, como sempre, ficou zoando no meu juízo. Cheguei em casa e saí ouvindo os vinis, cds e tudo que possuo do som dele. Deleite inenarrável.

Realmente, Hermeto merece ser ouvido - e como! Confesso ser um dos apreciadores mais fascinados com a música deste grande alagoano que faz parte da música universal. Vale a pena, vamos nessa?

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