segunda-feira, maio 21, 2018

SÓ ÀS PAREDES CONFESSO, DE VITAL CORRÊA DE ARAÚJO



MAIO DE MIM

Sempre é maio quando morro
No braço cruel de abris me socorro
Maria vem nua em junho
Em julho foi meu 2º aborto
De agosto guardo uma ou duas lágrimas de Getúlio
- de um mesmo olho colhidas – e na memória
Partida
A marca de um tiro no peito do calendário
E em setembro as primaveras se enforcam
Em outubro Inês é morta, novembro não tem porta
(perdoem a rima casual!)
Dezembro soa a sino, assassino ou retórico eco
Enche de ladainha sonoras a soleira das casas
Nele grassa um bimbalhar que assusta
E a neve artificial se acumula nas entradas da ilusão
Percorrida por renas automotivas e trenós a diesel
Cães de papiro, lobos vespertinos e temporais vespas
Que assediam o andarilho.

MUNDO E MUNDO

Mundo, cárcere longo túmulo
Estrada onde peregrinos morrem
Urna de pedra que trancafia a voz
Cárcere do verbo, ampola poluta
Opulento circo, pão crasso
De onde fugiram pássaros
Para a morte do voo icário
E nos exílios canoros da sombra encontraram
A sanha, o som da máscara, o sono cavo.
Mundo, lustre de ferro solitário
Onde a luz crucificaram
E coroas de treva ergueram
Sarjeta de pedra onde jazo
Escuro onde me ataram
Desde as nascentes do rosto
Desde os primórdios do nome
Escombro onde a alma perambula
À procura de um corpo desolado
Quando a náusea se aproxima
Para a cena do último sopro.

DISCURSO CRESCENTE DE MIM

Hoje estou só sem vírgulas ou palavra súdita
Estou acamado nas nuvens mucamas do poeta
Nefelibatando infelizmente prenhe de imagens úmidas
À superfície da lua me ato ao rosto do amor –
À beira mar de Vênus curvo-me
Ao som de grandes cubos degradados
No interior de grades tresmalhado
Os arames da selva corroem-me o início de mim
Panteras rondam-me o abdome raro
O peito franco e caminhos levam a albatrozes franceses
A jângal de alumínio e pólvora, a feéricas feras leva-me
A poesia inútil necessidade de ser-me
Além, muito além, dos meios, dos caminhos, das sedes
Vogo vago ignavo signo avitimado e surdo à palavra
Nada surge no meu auge fúlgido alforje nada
Me lembra a não-náusea de teu corpo arte
Que Sartre em Simone bela bebeu,
À beira do lago augusto arrostam-me
A libidinosas e abúlicas correntezas
(o imaginário é oriente fértil como as metafísicas do acaso)
Uno-me ao fôlego lisboense das sereias
Meu ar ávido divido com épuras e coivaras da vida
Ou inertes corações de cedro dinamarquês ergo
Às canadenses miragens do meu velho empório de sonho
Que alto professor de poesia alicerçou de palavra
Mestre que sondou meus demônios
Decifrou escuros urdiu simulacros
Coabitou suicídios.

FRUTO DO VENTRE

Eis a adolescente sombra a silhueta longínqua e
Frágil que erra na cidade longa à margem
Da última rua do agonizante século.
Eis o rosto que avós remotas construíram em
Hábeis cópulas sob luas animais.
Eis o fruto do ventre amargo, a semente que
Perdura além da fúria a árvore
Além do som da dor maior.
Que outonos despetalam, volúpias transbordando
Das tinas do gozo?
Eis o poema que o pó cobrirá e como vão perfume
Evolará pelos intrincados caminhos
Da vida e da morte.

PARA QUE POESIA?

Para que o sal siga seu percurso branco
E a messe não desponte esquinas
Para que a vida diária da ira endêmica ou dourada se desespere
Para que a vida colérica da larva alvará ou fálica morra (?)
Para que pássaros voem a ciladas
Ou como chumbo caiam nas calçadas sob dobre inútil
(para que o pó de cravo e canela os console
Ou cubra o cinamomo seu voo imóvel para a morte) (?)
Para que as vísceras dos ancestrais resistam
E o rumor dos semestres não impaciente senis (?)
Para que os manás das manhãs continuem
A cair dos céus na boca dos infelizes
E contaminem a náusea dos agonizantes (?)
Para que nascentes de bem-te-vis abram-se
Em copas carnosas, em unguentos, babosas
E despejem cores imperecíveis sobre enlutados (?)
Para que o rosto das andorinhas de março nunca morra
Nem adormeça a claridade dos beijas-flores diários.

POÉTICA (ARTE E AMOR)

Em ritmo de abismo o pássaro siga
Meu poema seu atento e obscuro trabalho
Oprima sombras, seja capaz de círculos feridos
Trame comunhão entre treva e coração
Nele as palavras escavem textos, ossos, coivaras, rostos
Abram abismos ou precipícios brancos
Incerta química cifre-o de limbos, sons, pedras, abelhas
Em seu solo revolva-se memória de velhas intempéries

POR QUE ESCREVO POESIA?

Eu escrevo poesia porque vou morrer.
Porque a eternidade existe para a pedra
Não para a carne
Porque o espirito é de barro
Eu escrevo para que não amanheça
Para que meu rosto termine
Eo olhar escureça antes do pássaro nascente
Escrevo para que as folhas tombem na tarde
Escrevo para que minhas veias gritem
E os omoplatas derruam-se sob pesares
Sob fardos de medo do mundo eu ceda
Eu escrevo para que os mortos se amontoem
Em meu ombro escuro em minha face esquerda
Nos poços cavos de minha consciência nua
Em meu leito abstrato e convulso
Nos lençóis úmidos de esperma anônimo
Escrevo para reviver espúrios amores
Para triunfo da noite e derrota da morte
Para gáudio de madrugadas feridas
Escrevo porque vou morrer
E preciso deixar um poema no mundo.

LEGADO DE UMA TARDE DO RECIFE

Desta tarde restaram ossos sonolentos
E alguma cinza
A fugidia imagem de corças lentas ao crepúsculo
(lago de grave creme a aurora deixou
Para a indeclinável toalete da noite)
Somente sobraram bastardos rumores
Da metrópole agozinante.
Era uma tarde invertebrada.
E meus olhos morreram.

CRENÇA

Nunca acredites em pátios sem lua...
Ou na truculência dos aromas mortuários
Nunca navegues nas espáduas de tardes montanhosas
Nem nos rios abstratos de dezembro
- que Capricórnio espreita
Nunca creias em promessa de mulher
Ou em poemas escritos na água
Ou rubricados na areia.
Só creias no cheiro carnal e cruel do amor
(do amor excelso das mulheres)

FUGA DO ROSTO

Narciso se contempla absorto
No amante que o aquoso
Espelho cria da matéria
Formosa do seu rosto
Ao beijar-se vê o lábio
Trêmulo da água ao sopro
Do amor mover-se como
De si fugisse a face
Ao suspiro de Narciso
Se encrespa a água
E a imagem amada
De si mesma se estilhaça.

TRAVESSIA CEGA

Atravessei estações, rochedos, banhados, abrolhos,
Lampejos, constelações atravessei
Pedras, sonambulas multidões, urnas, amuletos,
Vírgulas, gritos, ralos de almas dons de sombras
Hostes de fantasmas, intestinos, números, topázios,
Atravessei ruas e rosários rotas nuas
De flores, luas e cavalos atravessei doires, curvas
Mares, extenuado o inútil abismo atravessei
Rios, vozes, ruidosos ossuários atravessei sem o
Conforto de uma certeza.

DECLARAÇÃO IRRESPONDÍVEL

I

Intrincados lamaçais, poços de estrelas
Buracos-negros iníquos, suavidades horizontais
Barreiras, encômios, oclusões, singularidades
É meu intercurso poético-carnal.

II

Minha poesia é qualquer coisa:
Menos edificante.

FALO (CONFISSÃO DE NERO)

Eu, César, à cata de cônsules lascivos
E rijos guardas pretorianos
Para deleite de minhas noites sem incêndio
Eu, César, em cada manhã buscando indecisos azuis
Em tragos profundos fogos sorvendo em irisados
Cálices de irada pira romana
Eu, César, que grasso nos territórios portuários
Em busco do arrimo de um homem do povo
Eu, César, em sonâmbulas deliberações anunciando
As hostes do futuro ilhadas em minhas mãos impuras.

PROGRAMA

Morrer sob o clero implacável do relâmpago
Vendo a mitra do trovão beber-me o rosto
Ir-me ao ermo na rota do sem rumo turvo
Tocar o hímen da incerteza e o muro
Que as esperanças não ultrapassaram.

TEMPO GÓTICO

A silenciosa arquitetura
Da igreja gótica obra
Da parábola e teia do tempo
Fruto da mão, trigo
Da imaginação de homens minuciosos
Os esplendores das rendas
Tramas ávidas, feéricos
Covis de rosáceas
Chusmas de vitrais
Rasgam olhos
Onde dança louca
Embriagada íris barroca.

TODO ME ABANDONO
TODO O ABANDONO

Sob jugo do vasto êxtase
Basalto úmido
Logo sucumbo
Do labirinto peregrino longo
Nu me encontro
E na pele amante da noite
Todo me abandono.



SÓ ÀS PAREDES CONFESSO – A obra Só às paredes confesso (Bagaço, 2007), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, foi agraciado com o Prêmio Edmir Domingues, da Academia Pernambucana de Letras, em 2007, prefaciado pelo professor Sébastien Joachim, da Universidade Federal de Pernambuco/Paraíba, “Sublime e não-lugar do poeta & da poesia em Vital Corrêa de Araújo”, e por Cláudio Veras Toledo, “A poesia do século 21”. Veja mais aqui, aqui e aqui.